26/03/08
26/03/08
Poucas vezes falei sobre esse dia incrível. Foi no ano de 2005. Recebi um telefonema do meu amigo santista José Roberto Torero me convidando pra uma missão irrecusável. Torero é um sujeito cool. Não costuma ser efusivo. Evita entusiasmos. Dizia num tom quase rotineiro que havia falado com o Chico Buarque. Essa primeira informação já foi suficiente para que eu ficasse ansioso. Era aniversário da morte do centroavante Pagão, que além de ter sido um craque do nosso Santos, foi ídolo e referência para o boleiro Chico desde a infância. Torero, para comemorar a data, convidara Chico e o seu time Politheama para um jogo amistoso na Vila Belmiro contra o time de Veteranos do Santos. Meu papel nessa história seria produzir um show no SESC de Santos com canções sobre futebol. Jogo e Show fariam uma tabelinha na agenda cultural e esportiva da cidade. Torero, dias depois me confidenciou que ligou seguidas vezes para o Chico a fim de fazer o tal convite e ouviu o dono da voz na secretária eletrônica. Desligava e não dizia nada. Na primeira tentativa corajosa de deixar um recado, Chico retornou imediatamente topando a proposta. Quando soube que iríamos buscá-lo em Congonhas, tive uma idéia. Sabia que o Chico não participaria do meu show. Mas sabia também que desceríamos a Serra do Mar juntos na Baleia (ônibus do time do Santos). Então propus que gravássemos em video um papo com o Chico sobre a ligação do futebol com a música popular. A conversa seria baseada no roteiro das músicas do show. Assim, poderia editar trechos do depoimento e fazer do Chico uma espécie de MC do show em um telão, intercalando suas falas com as músicas ao vivo. Avisamos o Chico da idéia e mais uma vez ele topou. Fiz um roteiro de músicas com sambas do Wilson Baptista, Jackson do Pandeiro, Benjor, os hinos do Lamartine Babo e canções futebolísticas do próprio Chico. Fiz também, com o Torero, uma pauta para a nossa conversa. Chico chegou em Congonhas sozinho. E eu o esperava também sozinho. Ficamos na calçada conversando. Eu me surpreendi com a minha calma. Poucas pessoas o abordavam, muitas olhavam. Havia uma especial atmosfera de respeito bem favorável no nosso entorno. Escolhia cada fala com um rigor chinês. Chico gostou da minha camisa vintage do Santos, edição comemorativa do time tri-campeão paulista dos anos 60. Falei que era vendida no boteco São Cristovão aqui em SP. Tomei coragem e dei meu disco a ele, que agradeceu e o colocou em uma mochila. Gostei de ver o CD se acomodando entre as chuteiras do craque. Essa imagem ficou fixada na minha memória como uma foto cheia de significados. Não me esqueço da imagem da Baleia chegando em Congonhas com o Torero de pé ao lado do motorista. Foi a única vez que o flagrei com cara de criança. Aos poucos, os outros jogadores chegavam na ponte-aérea seguinte. Eram amigos do Chico, jornalistas, compositores e o seu médico particular. Na descida da Serra, Chico foi conosco para a parte traseira do busão e conversamos com muita fluência sobre a época que ele foi motorista do Garrincha e da Elsa Soares, a dificuldade do Caetano com o futebol em contraponto com a vocação de goleira de Paula Lavigne, racismo no futebol, Robinho, Romário, infância, exílio e futebol de várzea. Chico foi recebido na Vila Belmiro com um coral de crianças cantando um samba em sua homenagem. Visitou o memorial, ganhou alguns mimos e seguiu quase profissionalmente para o vestiário. Lá, fui ficando de fato emocionado. O Santos preparou um armário com sua foto como faz para cada jogador do elenco. Pelé tem um desses armários só pra ele até hoje. Mas a emoção vinha mesmo a cada entrada de um ídolo da minha infância: Mané Maria, Clodoaldo, Lalá... Fiquei dividido entre o herói da música e os heróis da bola como uma criança que abre envelopes de figurinha. Eu deveria integrar o time do Politheama por alguns minutos, como Torero o fez, mas estava com uma lesão no joelho. Isso provocava um certo sentimento de exclusão ao ver os craques do Santos e do Politheama colocando os uniformes. Entrei no gramado com todos para humildemente assistir a partida histórica. Os veteranos do Santos venceram por 5 a 3. Mas, durante o jogo, um momento memorável. Chico não havia marcado nenhum gol e entrou na área em condições de fazê-lo. Clodoaldo, elegantemente, deixou que Chico o driblasse. Chico o fez e com o gol vazio, retribuiu propositalmente o presente chutando a bola para fora. Uma lição de mestres. Comemos churrasco e voltamos na Baleia já de noite para levar o Chico de volta ao aeroporto. A volta foi uma farra. Chico estava descontraído e comentava cada lance da partida. Na Avenida dos Bandeirantes, crianças abordaram o ônibus gritando “Robinho”. Chico abriu a sua janelinha. Ninguém o conhecia. Então, ele apontou para o goleiro do seu time, um rapaz negro, bonito e franzino, que acenou para as criancas como se fosse o Robinho. Tudo foi gravado em video. Depois de me despedir, peguei meu carro no estacionamento com mais de 4 horas de fitinhas DV cam. Desci a Serra voando para editar as fitas. O show era no dia seguinte. Entrei no palco do SESC como quem entra em campo. Os músicos que me acompanharam eram todos de Santos: uma banda de baile chamada Star Five. No telão, o centroavante Chico Buarque distribuía o jogo. Não devia fazer esse comentário. Mas ainda fui remunerado para isso. Essa foi a única vez na minha vida que fiz um trabalho que integrou as minhas 3 paixões: música, futebol e roteiro. Devo essa experiência maravilhosa ao meu amigo Torero.