RUGAS NA PELE DO SAMBA
Por Fernando Salem
Esse álbum foi feito todinho na minha casa. Precisava ser assim. Todas as minhas experiências anteriores com discos tinham um grande intervalo de tempo entre o impulso criativo (composição) e o trabalho em estúdio (gravação).
O modelo tradicional de produção musical é confortável, porque agrega outras pessoas, ouvidos, arranjos e participações. Mas de um tempo pra cá, passei a me interessar em unir a idéia de compor à de gravar. E comecei a criar as canções ao mesmo tempo que me embrenhava no mundo dos plugins, cabos e efeitos sonoros. Há um certo amadorismo confesso nesse mergulho. Sobretudo no aspecto técnico. Mas apostei as minhas fichas na busca de uma textura, a um só tempo, humana e eletrônica para aquilo que no meu imaginário se configurava como “samba”.
A primeira canção que nasceu dessa experiência foi Samba do Químico, composta pra comemorar os 80 anos do meu pai. O take de voz é o primeiro, do dia que compus toda a idéia. Não cantaria de novo. Era aquilo mesmo que tinha de ser. Apenas convidei o bandolinista Joel Timoner para fazer um solo que ele gravou e me enviou da Suíça, onde mora.
A partir daí, fui compondo, gravando e mixando tudo ao mesmo tempo. Então, fiz Sambadiferente para abrir e A Última (Lado a Lado) para fechar o álbum. A primeira, uma alegre homenagem ao samba, a segunda um tributo aos meus ídolos mortos. As duas canções propuseram uma espécie de unidade ao todo. E as outras foram nascendo se comunicando com elas.
Nesse beat, gravei 26 canções entre 2007 e 2009. 13 minhas e 13 regravações de velhos sambas. A idéia inicial era justapor as inéditas e as antigas numa espécie de diálogo entre presente e passado. Com o tempo, percebi que eram 2 discos.
E o álbum ficou assim: 11 inéditas, mais os velhos sambas Olha o Padilha e Palhaço, numa espécie de aperitivo do próximo disco. Esse também está prontinho e não fossem as dificuldades do mercado já o lançaria. Mas aguardo o final do ano pra isso.
Rugas Na Pele do Samba, apesar de dar nome ao disco, não foi composta para ele. Fiz de presente pro Caetano. Compus e gravei numa tarde. Caetano cantou em seu show zii e zie em São Paulo e eu o convidei para gravar. Não poderia ficar de fora.
O samba Odalisca é a mais antiga composição do CD. Fiz com o Arnaldo nos tempos do Colégio Equipe. Ele se espantou ao ver que eu me lembrava de toda a letra e foi logo tratando de incluir novos versos. Adoro a maneira que ele gravou a voz.
Paulo Miklos é um crooner! Sabe tudo de samba. E Transfiguração, apesar do groove esquisitão, é um samba com alguma referência involuntária à Não Vou Me Adaptar dos Titãs.
Meu Bisavô é uma homenagem a... meu bisvô, o maestro Juca Storoni que compôs o hit do carnaval de 1909, a marchinha No Bico da Chaleira.
Mudei de Musa é uma canção bipolar. A compus no carnaval de 2009, em meio à euforia dos desfiles via satélite e a melancolia do carnaval dentro do meu estúdio.
Sônia é a única música que compus sem letra. Demorei muito pra descobrir os versos. Foi num blackout dentro do bar São Cristovão em SP, que pedi uma vela e um guardanapo e rabisquei a letra. No dia seguinte, tive trabalho para entender meus garranchos amarrotados que homenageiam minha irmã queridíssima.
A Felicidade é nome de muitas músicas. Tem A Felicidade do Jobim com Vinícius e tem a do Luiz Tatit. Mas como todo mundo tem a sua felicidade, aí está a minha também.
Asas Pra Voar fiz com Luiz Macedo para o longa Anésia, sobre a primeira aviadora do Brasil. A gravação é a guia para o registro oficial feito pela cantora Adyel.
Essa playlist resultou num gesto sincero. Poderia ficar mais bem embrulhadinho se a fizesse com os músicos amigos, mas não teria o registro da minha fúria no ato de compor.
RUGAS NA PELE DO SAMBA
Por Bráulio Mantovani
Não posso dizer como é bom poder tocar um instrumento. Porém, posso dizer como é bom poder ouvir um disco novo de Fernando Salem. Não sou músico. Mas fui parceiro de Fernando Salem. Parceiro de roteiro. Escrevemos juntos um sem número de programas educativos. E a parceria foi além e virou amizade. E quando viramos amigos eu disse para o Salem: você sofre de incontinência criativa. Ele riu, mas eu errei no verbo e na preposição. Salem goza com uma incontinência criativa que tem seu ápice nos sons das palavras e dos acordes.
Quando eu ouvi as faixas de Rugas na Pele do Samba eu ouvi as rugas. E ouvi a beleza das rugas. Nunca entendi o desejo de esconder as rugas do rosto. Sempre achei lindo o desenho das rugas na pele. E talvez por isso achei lindas as rugas que Salem inscreve nas canções de seu novo disco.
Eu ouço as rugas nas rimas insuspeitadas e bem humoradas. Nas distorções ocasionais de vozes e cordas de guitarra que se assanham entre pandeiros e tamborins. Nos momentos samba-rap. Nos sons que ressoam quando menos se espera, desenhando as rugas que revelam como ainda é bela a velha pele do samba.
E como é belo o encontro da pele velha com as novas rugas. Pois foi do encontro entre velho e bom samba e o novo “meiomensagem” da internet que brotou a canção que dá título ao disco. Salem compôs Rugas na Pele do Samba (referência ao samba Rugas, de Nelson Cavaquinho) a partir da experiência que compartilhou com outros internautas no blog Obra em Progresso, de Caetano Veloso e Hermano Vianna. Quando o encontro virtual se tornou real na casa de um dos participantes do blog, em Salvador, Salem cantou a canção. E Caetano gostou do que ouviu e cantou a canção em seu show em São Paulo. E Salem gostou de ouvir a canção na voz do mestre. E o mestre Caetano se juntou a ele para gravar Rugas na Pele do Samba, num dueto que é sem dúvida um dos pontos altos do novo disco de Salem. Um dueto que celebra o encontro de dois grandes poetas da canção popular e o início de uma amizade que, talvez, quem sabe, um dia, torne-se também parceria.
Antigas amizades também estão presentes no disco, com as participações de Arnaldo Antunes (na faixa Odalisca) e Paulo Miklos (Transfiguração). Dois duetos dignos de nota.
Voltando à idéia do encontro entre o velho e o novo, Salem lança suas rugas na pele de dois sambas reinterpretados com humor requintado: Palhaço (Nelson Cavaquinho, Oswaldo Martins e Washington Fernandes) e Olha o Padilha (Ferreira Gomes, Bruno Gomes e Moreira da Silva). Em ambas as faixas, o antigo soa novo em folha, como se tivesse sido composto na noite passada, numa roda de “samblers”.
Gostei especialmente das faixas Sambadiferente e A Última (Lado a Lado), talvez porque ouvi, em ambas, ecos das saudosas temporadas que passei ao lado de Salem, escrevendo roteiros, jogando pingue-pongue, trocando confidências, brincando de imitar cantores (entre eles, Caetano) e, principalmente, esculpindo textos a quatro mãos. Era graças à incontinência criativa de Salem que eu me motivava a dar graça aos textos que escrevia, arrancando-os da banalidade e da miséria cotidianas com rimas, aliterações, assonâncias, metonímias e ocasionais metáforas. Assim inscrevíamos as nossas rugas nos textos que escrevíamos juntos. E foi essa “alegrialegria” que revivi agora, reouvindo vezes seguidas, faixa a faixa, as Rugas na Pele do Samba.